O Estado de Direito e a Moscambilhice (1)

     As democracias liberais europeias estão em crise. Podíamos ensaiar múltiplas explicações para o fenómeno. Até escrever uma tese de doutoramento sobre o tema. No caso em apreço, não ficará seguramente mal alguma contenção na ambição. Iremos ao longo deste texto debruçar-nos apenas sobre uma possível explicação. Poderá não ser a mais importante. Não é seguramente aquela a que os politólogos dedicarão mais atenção. Mas é seguramente aquela a que os cidadãos são particularmente sensíveis, aqueles a que em inglês se chama ordinary people.
     Falamos da integridade (ou a falta dela) de alguns altos dirigentes da função pública. Este tema relaciona-se diretamente com o modo como utilizam o poder que lhes advém dos cargos que ocupam, muito em especial quando o exercem de um modo arbitrário, contra o interesse público e ao arrepio da lei, julgando-se impunes e acima de qualquer escrutínio e prestação de contas. A ordinary people tem o sentimento da justiça muito à flor da pele. Más práticas reiteradas conduzem à crescente descrença que grassa nas democracias ocidentais (mais numas do que noutras).
     A história que vos vou contar é mera ficção e passa-se algures numa democracia liberal da União Europeia. Façamos um suponhamos…
     Numa 6.ª feira, uma “alta patente” militar encontra-se numa cerimónia pública em representação de uma “patente ainda mais alta”. Era o último dia em que a “alta patente” militar se encontrava em funções e a cerimónia da sua despedida estava agendada para ocorrer na 2.ª feira da semana seguinte.
Durante referida cerimónia pública, a “alta patente” militar recebeu um telefonema da “patente ainda mais alta” informando-a que estava exonerada do cargo desde a 4.ª feira anterior. Exonerada retroativamente. Ou seja, soube por telefone que não exercia funções há mais de 48 horas, apesar da “patente ainda mais alta” o ter nomeado para o representar na referida cerimónia pública e de ter continuado a exercer as suas funções com toda a normalidade. A “patente ainda mais alta” encontrava-se em viagem.
     O leitor perguntará qual a necessidade de fabricar uma exoneração fictícia numa data falsa. Vamos deixar que a curiosidade se mantenha por mais umas linhas.
     Uma “patente igualmente alta” passou à reserva na 5.ª feira. E com essa passagem à reserva “outra patente igualmente alta”, amiga da “patente ainda mais alta” era arrastada e tinha que passar compulsivamente à reserva. A “outra patente igualmente alta” tinha atingido o tempo de permanência no posto a meio do ano de 2016. Foi mantida ilegalmente na situação de ativo para poder ser promovida a “patente mais alta”. Não bastasse a ilegalidade desta situação (provavelmente, a bem da transparência e do Estado de Direito seria conveniente que alguém explicasse por que contra a lei se mantém no ativo alguém que atingiu o limite de permanência no posto, recorrendo a uma artimanha que não tem suporte legal), recorreu-se à perfídia e à mentira falseando datas. Com a "nova" data era possível "repescar" a "outra patente igualmente alta" para ser promovida a "patente ainda mais alta".
     Que pensarão os subordinados da integridade desta “patente ainda mais alta” quando se aperceberam da trapaça? quando tiveram que antecipar para 6.ª feira a despedida da "alta patente" porque este tinha sido "exonerada" na 4.ª feira. Que exemplo é este? Que réstia de princípios éticos e valores transmitiu?  
     Gostava de saber qual o código deontológico em que é admissível falsificar/fabricar datas de exoneração para criar artificialmente vagas para os amigos?!
     Configura esta situação algo de muito grave e absolutamente inaceitável. Quem deveria ser exemplo de integridade e retidão é afinal o prevaricador.
     A acontecer uma situação destas no mundo real, não ficcionado, deveria levar à exoneração com efeitos retroativos do promotor da moscambilhice, leia-se a “patente ainda mais alta”. Sem estrilho, com descrição. A ficar impune, significaria que esse país seria um arremedo de Estado de Direito. Escusado será dizer que qualquer semelhança desta estória com a realidade é mera coincidência.

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